29.6.12

Fernando Guerreiro sobre o Prémio Nacional de Poesia/Mau Sangue (texto lido pelo próprio na apresentação do livro/CD, no Pátio Grego da FLetras)

           Nuno Moura , Prémio Nacional de Poesia  (miasoave, 2012)


    1. Colocando-nos no lugar do “leitor” como “revisor de caracteres” (86)[1], avancemos a ideia de que o que temos nas mãos  é uma alegoria platónica (o termo é aliás utilizado no corpo do texto [53]).
    A “fábula”= “conto exemplar” de uma candidatura de um 1º livro de um 1º poeta  ao Prémio Nacional de Poesia, i.e. ao “Jogo da Glória” (77) de uma Literatura entendida como “convenção” (ou “tradição”, sempre soa melhor), “marmelada das letras” onde “anda toda a gente a misturar toda a gente” e a ver se escreve – “ideia política central”, diz o autor – no “poema único” (o “poema da linha dos Reflexos” [73]), “quando normal seria que a abertura de hostilidades”, a “divergência”/ “dissenção”, nos “tocasse” (68, 69).
    A “poesia” (“literatura”), ao fim e ao cabo, aqui entendida como Sociedade do Espectáculo (“esse poema está pensado para ser apreciado com a televisão ligada” [96]), um empreendimento de “etiquetagem” bolsista (“um objectivo accionista dentro de uma lombada” [79], já que “ as nossas palavras estão cheias de trocos” [72]) em que, como é dito, pela sua “performance” (“um solo de poesia com uma hora e 45 minutos não se esquece” [101]), “o poeta ocupa o lugar do chocolate no papel prata” (51).
    O “jogo de glória”, pervertendo a famosa fórmula de Heidegger do “ser para a morte”, é quase sempre um jogo / corrida para a morte (“é o camisola amarela que faltava à morte  e a todo o grupo do estilo mortássico para sempre” [30]), um pouco como em  They shoot horses don’t they?  de Horace Mc Coy (vd. “a fotografia com a nova geração de poetas”, grande atracção do conhecido “Café Abutre” [18]).
    A esta concepção mortuária=fossilizada (no tempo e na foto) de poesia, o autor contrapõe “[some other] kind of poetry” (92), não “críptica” mas cujo sarcófago são corpos  vivos (“o poeta quer ser sepultado […] no desenho de uma rapariga e no desenho de um rapaz” [45]) que a continuam pelos seus gestos e desejos (um poema que “imprime, na hora, uma imagem para cada um” [97]).
    No entanto – e é essa a definição clássica de “alegoria”, “dizer por outras palavras” -, parece-nos que esta fábula faz passar “outra” (de acordo com o lema: “queima as pistas que levam à tua poesia” [8]): a saber, um discurso sobre a verdade da poesia enquanto “pranto” (20)/ “livro de reclamações” (80). Dito de outro modo, a poesia “ensanguentada” (“Ei, poeta, que é esse saco manchado de sangue? Porque é que não poupas o sofrimento a todos?” [40]), “ferida” (“o poeta mostra a ferida que tem na cabeça” [47]) de uma “voz partida” que “mostra o seu terceiro lado” (50), mas artilhada com uma “prancha de surf” para planar (47) (“os melhores versos andavam ainda à solta” [49]) e com o seu cânone bem estabelecido: Ângelo de Lima (115) – de quem uma das construções vocabulares deu nome à editora de Nuno Moura: miasoave -, Herberto Hélder – via Edoi Lelia Doura (107)-, Pedro OOM (“já se pode?” [2]), Maria Gabriela Llansol (via Belgais [92]) e, claro, Adília Lopes (102).
    E se o livro, no seu todo, pode ser lido como Alegoria, isso, como o referiu Walter Benjamin, conduz-nos a uma concepção ao mesmo tempo melancólica e profética do Tempo como ruína / catástrofe, de que a “poesia” constituiria como que um “destroço” ou “salvado” (22).
    À “grande narrativa” da “poesia nacional” (a que ganha prémios) e da Literatura (o banco que a alimenta) contrapõe-se a contra-narrativa da “poesia” como estética pobre (a de Job [42] e do poeta “No/nome” [45]), de um primeiro poeta: original, emergindo de uma “explosão inicial” (Big-bang primitivo [23]), mas que seria suficientemente provida para operar a restauração do real (“Era um primeiro livro de versos, continha legendas para electrocardiogramas e nomes reais”[23]), das coisas dadas na sua elementariedade mais essencial e simples: a poesia, diríamos, depois do final de O Eclipse de Antonioni, dada num registo lento do tempo (“lembrar-se de fundar uma editora lenta, de um único exemplar por edição…” [19]) e que se dispersasse/ disseminasse no ar “como areia organizada transportando vento” (98).
    A sua fórmula, como nos melhores exemplos de Francis Ponge, seria aliás simples: “Para salvar esse poema saponifique 50 partes de óleo de coco com 100 de lixívia de soda cáustica, a vinte graus Baumé, com 3 a 4 partes de soda Salvay. Bata bem o poema e depois de abandoná-lo a si mesmo durante algum tempo junte-lhe 50 a 70 partes de areia seca. Mexa” (99).

    2. Alegorizando sobre a alegoria, daríamos a essa segunda narrativa o nome de O retorno e vingança de Eco (ie. da poesia como “fala”) sobre Narciso (a poesia reflexo: imagem escrita: literatura) (“o que sabem verdadeiramente de narcisos?”, pergunta-se a certa altura [22] – a relacionar com as referências ao motivo do “espelho” nos fragmen- tos 71 [essa “população do espelho”]) e 92 [“tira-me esse espelho da frente”]).
    Com efeito, com Nuno Moura, trata-se sempre mais de uma poesia para ser dita= vocalizada=encarnada por um corpo que a põe em movimento/ metaboliza, do que para ser “lida”. Como se escreve logo no fragmento de abertura: “O que aqui se lê em silêncio foi escrito para ser lido [e talvez mesmo, acrescento eu, escrito] ao vivo” (1).
    Não estamos perante “sombras”, a “ressaca grafológica” (64) do”silêncio” sepulcral da escrita (Platão, Fedro) mas perante  presenças sonoras, aparições em carne e som (=osso) de uma sombra viva (não de um poeta que “habita no sombreado das linhas” mas percorre o “perigoso atalho da sombra inicial” [97]).
    No Fedro esta questão é explicitamente posta no diálogo entre Sócrates e Fedro. Na sua argumentação Sócrates reproduz a resposta do rei Thamous a Theut, suposto inven-tor da escrita: “cet art produira l’oubli dans l’âme de ceux qui l’auront appris, parce qu’ils cesseront d’exercer leur mémoire: mettant, en effet, leur confiance dans l’écrit, c’est du dehors, grâce à des empreintes étrangères [< as letras: a escrita, dadas na sua descontinuidade/  ruptura ontológica com as ideias/ significações] et non du dedans [<a alma: verdade], grâce à eux-mêmes, qu’ils feront acte de remémoration [<uma técnica, portanto, não uma “memória viva”]” (Phèdre, Garnier-Flammarion nº 488,1989 [178]) (sublinhamos).
    E isto porque se preconiza (Sócrates) um discurso “écrit dans l’âme”, que o orador “porte en lui-même, quand il vient de l’inventer” [185]. Como escreve Nuno Moura: “a questão da arquitectura é igual à questão da poesia, que é o espaço da duração no tempo recitado” (107).
    Compreende-se assim a preocupação do autor, constatando que “o leitor não está preparado para ler no papel se o que lhe resta é a língua” que desaprendeu de usar (13). “O poema […] chega para fazer de morto nos nossos lábios”,“ficamos loucos com um morto nos lábios”, “é preciso cuspi-lo” (26), profere.
    E cuspir, expeli-lo com todos os dentes=letras (Cadmo), é dizê-lo= falá-lo: assim, “estando ela [a frase] escrita, a ordem vence” mas, “estando ela falada, a ordem redobra ânimo” (10). Ie. anima-se, torna-se viva.
    Daí a necessidade, nesse empreendimento, de refazer a língua, redizendo-a, assim como de começar pelo princípio, as vogais (15) (“como é bom escrever palavras com dois és”: “merceeiro”[59]), ou, depois, as consoantes (como a criança, repetindo: m,n,o,p.q [76])[2].

    3.  Esta é assim uma poesia não só de “palavras” mas também de actos, coisas, sensações agarrados às palavras – uma poesia “lambuzada” de real (3), orgânica (que se reproduz, tem filhos [123]), suja (89) (ou que se limpa a seco, matericamente, como os animais ou a noite [“limpavas cabeças em trevas exteriores” (49)]).
    Daí o interseccionismo metamórfico entre palavras-sensações-coisas dando origem a novas combinações e possíveis bio-geológicos que acrescentam real ao real e que, através dessa laboração interna da matéria (linguagem), o des-lindam, ie. o restituem deformando-o e desfeando-o, resgatando-o da carapaça de convenção (“belo”) que o encobrira e anestesiara.
    A este modelo de poesia corresponde também uma Imagem (“versos de fino ferreiro” [41]) que se forma por cristalização telúrica de estractos de referencialidade (imagéticos e sonoros) heterogéneos. “Vamos chegar aí por bombardeamento” (31), escreve, em termos que evocam os que VHILS (Alexandre Farto) utiliza para referir os seus murais (graffitis) de rua, feitos por explosão, a dinamite: “Tendemos a acreditar que certas coisas pertencem ao passado, não voltam mais. Mas não é verdade. Emergem a qualquer momento. Estão ali, a uma distância física. (…) Quero mostrar como as camadas vêm todas à superfície, de repente, como uma faísca” (Público,suplemento Ipsílon,1/6/2012).
    Uma imagem-cristal  (ou metálica, fundida, ciborgue), de herança simbolista (Ânge-lo de Lima) e modernista (o surreal [Herberto] abjeccionismo de Oom) mas impura= suja (89). Um pavão de cristal mosaico-TV pouco limpo (33), por assim dizer.
    “Barco de neve e sol” (38), o poema constitui um paradoxal caso de “coincidência dos opostos” (a sua fórmula é a do oxímero) e de “objectivação poética” (“criação pura”, diria Reverdy no seu texto sobre a Imagem de 1918 )[3] que, contudo, como o “ancinho” ou o “pára-quedas” (39), funciona e salva (pode servir, por exemplo, para a “fuga” do amigo [38] ou o regresso do escritor). É essa a lição, penso, do “conto exemplar” do fragmento 123.

    4.  Mas trata-se também –ainda na linhagem do diálogo peripatético (deambulatório) e metabólico (na sua relação com a natureza, o meio ambiente) de Platão –de uma “poesia locomotiva” (40), em movimento.
    Vê-se isso no carácter muitas vezes sobretudo “verbal” da construção das frases, um pouco de acordo com o sincretismo dos Ideogramas chineses(“a verbal idea in motion”), de  Ernest Fenelosa (The Chinese written character as a medium for poetry, City Lights Books, 1968) . “O poeta escreve somente sob a luz da caneta chinesa” (67), cicia Nuno Moura.
    Para Fenelosa, com efeito, o Ideograma constitui internamente uma operação (cata-crese) da natureza: “a vivid shorthand picture of the operation of nature” [8]. Daí que ler o conglomerado de imagens-bloco que constituem a frase (ou o período) no livro de Nuno Moura seja, como Fenelosa diz da escrita chinesa, “to be watching things work [ing] out their own fate” [9].
    Ou seja, como ver cinema: imagens hiper-reais, 3D, em convulsão, movimento, que, na sua vontade de acção= encarnação deformante e (co)movente, apelam tanto para a “dicção”(38), como, num “mundo sem música” (“não há música na entrada dos prédios, não há música na rua” [45]), para o “canto”. Melhor, talvez, a dicção-canto do grupo O Copo que Nuno Moura constitui com Paulo Condessa –ou do disco Mau sangue (“Mau- vais Sang” é também o título de um dos textos de Une Saison en Enfer de Rimbaud, e de um filme de Léos Carax)  que acompanha a edição do livro (disco resultante da colaboração entre  Nuno Moura, Beatriz Nunes e José Ferreira).

    5. Assim, se “nenhum grego é o mesmo para sempre” (66), a “poesia” (“tentamos escrever o poema difícil com a capacidade de nos ouvir”, afirma, sibilinamente, e em todos os sentidos, o autor [80]) continua a ser uma “máquina de atirar pássaros” (62): sons, imagens, palavras-aladas (mas com um grão na asa), ou ainda “sem suporte”, como preferia Sá-Carneiro.
    E sempre de acordo com o lema (Cesariny poderia tê-lo escrito): “Parar a escrita e mandar avançar o dia” (90).
    Dito de outro modo:
    “Quer laço?”/”Não, chega de ilusões” (75).
                                                                                                     Fernando Guerreiro
                                                                                  (5 de Junho de 2012)                 


[1]  Os números entre parêntesis referem o número do fragmento do livro (e não da página em que este surge): tomou-se como 1º fragmento o texto de abertura, em itálico, “O que aqui se lê em silêncio foi escrito para ser lido ao vivo”.
[2]  Santa-Rita-Pintor a Mário de Sá-Carneiro: “Escreva-me você, por exemplo, a descrição de um serrador serrando onde os erre se precipitem raspantes, e eu não terei dúvida em proclamá-lo um artista” (carta de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa, de 10/12/1912). Cf. também a poesia de Ângelo de Lima.
[3]  Reverdy: “l’image est une création puré de l’esprit”, “plus les rapports des deux réalités rapprochées seront lointains et justes, plus l’image sera forte”, “aura (…) de réalité poétique” (“L’Image”, Nord-Sud, 1918).

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