Ao 3º título a editora Mia Soave apresenta a antologia Doutor
Tristeza (organizada e prefaciada por Henrique Manuel Bento Fialho) do
decadente poeta brasileiro Augusto dos Anjos (1884 – 1914), primo em doidice
dos poetas interpretados por Ana Deus e Nicolas Tricot no projecto Bruta (CD), canções feitas a partir
de textos de poetas internados em hospitais psiquiátricos, e outros mais ou
menos delirantes, como
Ângelo de Lima, Stela
do Patrocínio, António Gancho, Mário de Sá Carneiro, Sylvia Plath, António
Joaquim Lança e António Maria Lisboa.
A Mia Soave editou o seu 1º título em 2011, “Reality Show ou a
alegoria das cavernas” de Alberto Pimenta com cd “Degrau (cuidado)” onde são recriados
poemas mais antigos do autor por um leque de músicos (Ana Deus, Alexandre
Soares, Pedro Augusto e João Alves), e o 2º título em 2012, “Prémio Nacional de
Poesia” de Nuno Moura com cd “Mau Sangue” de José Ferreira, Beatriz Nunes e do
próprio autor.
- A apresentação do
livro+cd “Doutor Tristeza / Bruta” será no dia 27 de Novembro, Sexta-feira, às
23h00 no Musicbox: Concerto Bruta
- Esta
apresentação será inserida no programa “Dias do Desassossego” da Casa Fernando
Pessoa / Fundação Saramago.
DOUTOR TRISTEZA
A LOUCURA DO INTELECTUAL
Talvez porque ainda ecoe com demasiada vivacidade o canto do
poeta “maior do que os homens”, vai sendo frequente encontrarmos quem atribua
ao artista um estatuto que o diferencia da gente comum. De facto, existem
diferenças que nos ajudam a distinguir os homens excepcionais dos homens
vulgares. Essas diferenças não são exclusivas do artista, podendo ser
encontradas nas mais diversificadas áreas da actividade humana. É também uma
questão aritmética de fácil compreensão, esta de ser possível encontrar entre
homens vulgares um que se distinga por determinada característica excepcional —
não sendo tal característica suficiente para que a esse indivíduo se atribua um
estatuto semelhante ao que é atribuído ao artista. Só por graça os camaradas
dir-lhe-ão: és um artista!
A questão pára num preconceito que julgávamos suprimido desde
que Baudelaire deitou pela lama a auréola do poeta. Na verdade, não foi
suprimido. Só isso permite compreender a tendência dos artistas para se
fecharem em grupos ditos minoritários (que é o mesmo que dizer elitistas),
recusando, ainda que inconscientemente, esbaterem-se entre as massas como gente
vulgar que se levanta todos os dias para o trabalho e do trabalho regressa,
todos os dias, ao conforto do lar. Excepções sempre houve, é certo. Mas hoje
falamos de generalidades.
É verdade que a inútil tragédia da vida não chega a merecer um
poema, mas também o poema não merece o poema. Porque, afinal, ele é parte
integrante da inútil tragédia da vida. Nem o poema nem o poeta escapam a esta
universal fatalidade. Não admira, porém, a disseminação de tontos que anseiam
ser tomados por poetas. Querem ser considerados de excepcionais sem que nada
neles exista de verdadeiramente incomum. O que é curioso, e até paradoxal, é a
constatação de que as diferenças resultam mais de uma consciência prática das
correspondências do que de uma dissimulada reivindicação das diferenças. Tanto
pode estar aqui em causa a demanda de um estatuto como a ânsia do prestígio,
uma muito humana necessidade de afirmação perante os outros e a mais rasteira
necessidade de auto-estima. Nisso, nada há de verdadeiramente elevado. O homem
mais alto do que os outros desce à terra e descobre-se minúsculo, tanto como as
folhas que tombam no Outono.
Podia dar-lhes para pior, é certo. Podiam desatar a disparar
sobre jovens em retiro. Escrevem poemas, pintam quadros, compõem canções,
actividades menos perniciosas, socialmente aceitáveis e igualmente
apaziguadoras da consciência interna de uma inútil e trágica existência. Aquela
que Augusto dos Anjos, em oito versos arrancados às “cismas do seu destino”,
descreveu com louca lucidez intelectual:
“Poeta, feto malsão, criado com os sucos
De um leite mau, carnívoro asqueroso,
Gerado no atavismo monstruoso
Da alma desordenada dos malucos;
Última das criaturas inferiores
Governada por átomos mesquinhos,
Teu pé mata a uberdade dos caminhos
E esteriliza os ventres geradores!”
Contemporâneo de Pessoa, apesar de ainda distante daquilo a que
por cá chamamos de modernismo, antecipou um certo sentido experimental no
que conhecemos da poesia brasileira. Isso nota-se numa estonteante riqueza
vocabular, julgada de mau gosto por uns e entendida, por outros, como
precursora da liberdade de linguagem que caracteriza a modernidade. Só para dar
um exemplo, o primeiro poema de “Eu”, livro único originalmente publicado em
1912, é uma orgia de vermes, de larvas, de micróbios, de vírus, que resulta
numa autópsia do Ser e da sua indelével corrosibilidade. No entanto, há como
que uma estética da dor exposta nessa «elegia panteísta do Universo», uma
estética da dor que torna bela a ruína e alegre a decadência.
Augusto dos Anjos nasceu em Paraíba do Norte a 20 de Abril
de1884. Descendente de famílias com propriedades, foi alimentado com leite de
escrava e educado pelo pai (homem erudito, leitor de Marx e simpatizante das
ideias abolicionistas). Terá sido no pai que Augusto herdou as suas
características mais conhecidas: misantropia e hipocondria. Cresceu num ambiente
culto, mas em franca decadência. Assistiu à ruína financeira da família e à
decadência física do pai, falecido em 1905. Supõe-se que o primeiro poema tenha
sido escrito em 1899, um soneto intitulado “Saudade”. Convenhamos que para
um jovem de 15 anos não eram estes versos saudável prenúncio.
Eis o retrato do poeta deixado aos vindouros: feio, ausente de
festas e de convívios, isolado, misantropo, neurasténico, desequilibrado,
histérico. «Homem de poucos amigos, enrustido, abrindo-se só com os íntimos, e
com estes afável e prestativo, sua personalidade, contudo forte, como que se
apagava diante de estranhos. Emudecia» (Francisco de Assis Barbosa). Não se lhe
conhecem grandes nem pequenas paixões, apenas uma alcunha entre colegas de
Faculdade, o Doutor Tristeza, e outra atribuída pelo crítico dos seus primeiros
versos publicados, Poeta Raquítico. Terminado o curso de Direito, elegeu a
profissão de professor por razões meramente materiais. Já casado, sem conseguir
vingar junto da sociedade de Paraíba, decidiu emigrar para o Rio de Janeiro.
Chegou em Outubro de 1910. No Rio continuou sempre a "vender aulas",
vivendo em condições precárias, perdendo um filho nascido prematuro, escrevendo
poemas, ora desprezados, ora ignorados.
Publicou o
seu único livro com a ajuda do irmão. Foi recebido sem entusiasmo, apesar dos
esforços elogiosos de alguns amigos. O poeta sentiu-se incompreendido e ao
isolamento físico acabou por corresponder um mais profundo isolamento estético.
Em 1914 conseguiu um lugar no Grupo Escolar de Leopoldina, em Minas Gerais,
para aí se transferindo. Deixou para trás três anos de Rio de Janeiro passados
em dez casas de diferentes bairros. Morreu vítima de uma congestão pulmonar, a 12 de
Novembro de 1914.
Longe de
consensos, apesar dos elogios de Carlos Drummond de Andrade, entre outras
autoridades da literatura brasileira, a poesia de Augusto dos Anjos (1884-1914)
foi resistindo ao longo dos tempos como uma das mais lúgubres expressões da
natureza humana produzidas em língua portuguesa. O crescimento do poeta
coincidiu com o declínio financeiro da família e a experiência da ruína em
sentidos diversos. É natural que este ambiente tenha contribuído para a
formação de uma personalidade sombria, a qual encontrará nos versos uma
expressão autêntica das dores íntimas, do desalento e da desesperança que o
perseguiram toda a vida.
Para a
organização desta breve recolha, servimo-nos da 48ª edição de “Eu”, acompanhada
por variadíssimos outros poemas (mais de 200 no total), na sua maioria sonetos,
fac-símiles dos originais, uma cronologia biográfica, exaustivas notas
explicativas, três ensaios de autoria diversa (António Houaiss, Orris Soares,
Francisco Assis Barbosa), entre outras curiosidades, tais como o inquérito de
1914 intitulado “A Loucura dos Intelectuais”. A polémica em torno
de “Eu” instaurou-se desde a sua publicação. Considerado por uns de
aberrante, foi elogiado por outros. Para tal contribuiu o carácter ainda hoje
inclassificável desta poesia. Podemos falar de decadentismo sem que
Augusto dos Anjos tenha sido um decadente. O sua tema mais recorrente na
poética é a “transitoriedade da matéria”, a presença da morte enquanto
inescapável destino que tudo subjectiviza, ao mesmo tempo que reclama sentido
para uma vida, deste modo, tornada absurda. Podemos evocar
o satanismo de Baudelaire ou o onirismo de Edgar Allan Poe (o
tema da amada morta aparece amiúde na poesia do poeta brasileiro), mas nenhum
destes conceitos classifica com justeza o reflexo omnipresente da morte em cada
verso de Augusto dos Anjos.
Alguns
poemas evocam as lições de anatomia de Rembrandt. Noutros são chamados à liça
os textos do antigo Egipto, a literatura sagrada hindu, Anaximandro de Mileto,
Haeckel e Goethe, para daí se retirar nenhum consolo. O que a consciência
procura reside na própria consciência, o Tempo impondo-se como realidade última
e a carne como ontologia derradeira. É a morte quem (co)manda a vida. Nada a
fazer, portanto, senão vivê-la. Não há como escapar aos apelos desesperados da
consciência perante a voracidade do verme. Para dentro do poema o poeta traz um
léxico improvável de doenças, de putrefacções e de sombras que não admira ter
sido considerado de mau gosto: «Escarrar de um abismo noutro abismo, / Mandando
ao Céu o fumo de um cigarro, / Há mais filosofia neste escarro / Do que em toda
a moral do Cristianismo!».
Colocado na
posição de ouvinte, imerso entre a realidade e a alucinação (o encontro com Poe
é impressionante), o poeta exprime as suas visões; não evita, sem dúvida,
filosofar quando nesse filosofar vive adormecida a verdade que o poema acorda.
Não é propriamente um visionário, muito menos um místico, é um mártir entre a
natureza humana que expõe a dor e desnuda o medo, dando a ver a sua intimidade
sem máscaras, mostrando enquanto se mostra, recusando a hipocrisia de uma
maquilhagem que pretende disfarçar o que nele, poeta, é verdade e alimento.
Perdido em
cismas filosóficas, dialogando com as fontes, olhando à sua volta e
perscrutando na intimidade das coisas, Augusto dos Anjos não procurou negar ou
disfarçar nos seus poemas aquilo que sentia. Por vezes deixa-nos curiosos («Não
sou capaz de amar mulher alguma / Nem há mulher talvez capaz de amar-me», in
“Queixas Noturnas”; «E eu nunca sairei desta Sodoma?!», in “Insónia”; «Mulher
nenhuma afagará meu tronco!», in “Minha Árvore”) sobre as autênticas
razões da sua poesia, uma necrofilia mística sem par (leia-se o poema “À
Mesa”), um «poeta do hediondo» capaz de deixar desconfortáveis as próprias
pedras sobre as quais seus poemas venham a ser declamados. Mas mais do que a
tristeza e uma certa mistificação da dor, o que nele há de verdadeiramente
tocante é a sensação de uma vida perdida sem ter sido possível vivê-la, uma
sensação implícita em toda a obra e explícita em poemas que, ficando de fora do
livro principal, convém ir mantendo debaixo de olho. Esperemos que esta breve
recolha sirva o leitor.
BRUTA
Ana Deus voz
Nicolas Tricot voz,
guitarra, baixo, banjo, flauta e manipulações de objetos
"Já alguém sentiu a
loucura
vestir de repente o
nosso corpo?
Já.
E tomar a forma dos
objectos?
Sim.
E acender relâmpagos no
pensamento?
Também.
E às vezes parecer ser o
fim?
Exactamente.
Como o cavalo do soneto
de Ângelo de Lima?
Tal qual"
Foram estas palavras de
Almada Negreiros no seu "Reconhecimento à loucura" que me
apresentaram a poesia de Angelo de Lima. Poeta nascido no Porto e que acabou a
vida internado num manicómio com o diagnóstico de esquizofrenia.
A sua poesia e o
reconhecimento da loucura na criatividade levou-me a procurar possíveis
artistas "brutos" da escrita.
O que não foi fácil, nem
de encontrar nem de rotular. A escrita é à partida um caminho com regras que
afastam muitos daqueles que no desenho ou noutra manifestação plástica
encontram o seu caminho de expressão.
Stela do Patrocínio foi
um desses encontros. Ao contrário da maioria dos internos da Colónia Juliano
Moreira, hospital psiquiátrico do Rio de Janeiro, ela preferia a palavra ao
desenho ou à pintura. Alguns dos seus "falatórios" foram registados
por voluntários que começaram a dinamizar oficinas artísticas com os internos.
O resultado dessas transcrições foi editado num livro intitulado "Reino
dos bichos e dos animais é o meu nome". Dela escolhemos dois pequenos
textos.
António Gancho, foi
outro dos poetas naturalmente escolhido. Internado desde novo em vários
hospitais psiquiátricos.
De poeta em poeta fomos
andando e a escolha terá começado a seguir outros caminhos menos
"brutos".
Teses sobre a loucura e
a poesia ou sobre o suicídio dos escritores há muitas, e são discutíveis mas
levaram-nos ao encontro de alguns suicidados muito longe da escrita
"bruta". De Mario de Sá Carneiro e Sylvia Plath escolhemos dois
poemas que nos pareceram pela sua estrutura mais possíveis de serem cantados. É
claro que a forma é tão importante como o assunto para quem tenta fazer
canções.
Ainda mais afastado dos
princípios da nossa pesquisa António Maria Lisboa apareceu-nos no caminho
apenas pela beleza da sua escrita livre. "A recusa" será o remate do
disco, como uma Errata* que não rectifica o que está para trás mas que abre a
porta à possibilidade de se ser aquilo que se quiser e da importância do amor.
A morte está presente em
alguns dos poemas escolhidos. Também por essa razão incluímos como contraponto
"A morte nunca existiu" do pastor poeta Antonio Lança, que tem sobre
a vida e a morte uma visão menos romântica
O caminho foi este mas a
escolha foi gostar e experimentar.
Canções a partir dos
poemas
De Angelo de Lima
- Mia Soave
- Soneto
- Tapada
De Stela do Patrocínio
- Gaz puro
- Falatório
De António Gancho
- Mortal
- Embriagado
De Mário de Sá Carneiro
- Serradura
Sylvia Plath
- A canção da rapariga
louca
(Tradução de Regina
Guimarães)
António Joaquim Lança
- A morte nunca existiu
António Maria Lisboa
- Errata
Nicolas Tricot é um
músico francês, multi-instrumentista, que vive no Porto há mais de 10 anos.
É membro da banda
"Estação de serviço" que tem acompanhado o Manel Cruz durante este
ano. Compôs, tocou e produziu discos com o Nuno Prata.
Ana Deus, cantora, tem
desenvolvido o seu trabalho nos últimos anos trabalhando textos e poemas de
Alberto Pimenta, Álvaro
Lapa, Almada Negreiros, Gabriela Llansol,
Ernesto Melo e Castro,
Mario de Cesariny e Regina Guimarães
1 comentário:
boa tarde,
ainda há cópias do livro/cd?
quanto custa enviar por correio para o Porto, onde moro?
como posso fazer o pagamento?
rui lourenço
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